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SEDUÇÃO

A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.

Adélia Prado/ Bagagem/ 1993

INFANTIL

O menino ia no mato
e a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do
menino.
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
e eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.

Manoel de Barros/ Tratado geral das grandezas do ínfimo/ 2001

A CERIMÔNIA DAS NUVENS

Nuvens

1.

Imenso papel azul
estende-se sobre a Terra.
Plural o que nele cabe,
acolhe a palavra nuvem.

A nuvem é singular
no mundo-dicionário,
mas se livre, é ave lépida,
vive em bandos, coletiva.

De seu ninho, vento e água,
flui bálsamo fecundo,
e a bruma deste cio
exige contemplação.

2.

Não cabe no peito
a cerimônia das nuvens
quando tinge de arabescos
o papel azul do céu.

É quando as nuvens estouram:
surgem velas peixes
monstros
bizarros gigantes que andam.

Se olhamos, não colhemos
a completa intenção
do celeiro transformante.

Mudam sempre os enredos
por contínua invenção?
Ou as formas são andantes
pois que buscam posição
para espiar nossos segredos?

Incomunicáveis,
as nuvens tecem casulo
de onde voarão
estrelas.

3.

O prazer do movimento
se retira,
ganha o ar novo alento,
geometria.

Surgem retas e quadrados,
olaria,
singular jogo de dados,
sintonia.

Surgem sombras ao esquadro,
contramão
de desejos ansiados,
ilusão.

Popular ensinamento
denuncia:
céu pedrento é chuva ou vento,
poesia.

4.

O dentro da palavra céu
esconde a seiva e os vapores,
tintura de sonhos e cores,
da alma das algas do mar.

Cardume de tintas agrestes
esculpe com asas e alarde
fantástica teia no oeste,
a paz em laranja das tardes.

De repente, o movimento
desmancha a fotografia,
rolam pedras, rola o vento
desperta a artilharia.

Céu de britas, não de nuvens,
arrebenta algum tinteiro
que guardava só o cinza,
cor retida em cativeiro.

Livre o cinza se espalha,
não de leve, se amontoa.
Vejo que entra desta dor
no segredo das pessoas.

5.

Encharcado,
de horizonte a horizonte,
vibra o ar
seus arpejos de fonte.

Pressionado,
roga o mar sua origem,
a saudade
impõe às nuvens vertigem.

Abafado,
todo o cinza se encurva,
principia
a cerimônia da chuva.

Edival Perrini/ O olho das águas/ 2009

VÉRTICE






 

 

 

 

 

 

 

 

Crédito da foto: Gustavo Asciutti.


Homem em pé sobre a canoa
pesca a manhã de cada dia,
noventa graus de poesia.

( Edival Perrini/Pomar de águas/ 1993 )

Edival Perrini

Edival Antonio Lessnau Perrini nasceu em Curitiba-PR, em 23 de outubro de 1948, onde cresceu e reside. Saiba +

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