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“Lavo, lavo o meu poema”

lavo, lavo o meu poema
até deixá-lo limpinho
de tudo o que o impede
de ser claro como a água

lavo, lavo o meu poema
com sabão e com escova
quero que seja escovado
da mais mínima sujeira

lavo, lavo o meu poema
que é só meu, mas é de todos,
sendo limpo, sendo lindo,
cada um o julga seu,
todos o querem para si

lavo, lavo o meu poema
lavo, duas, lavo três
lavo quantas forem precisas
as vezes de o bem lavar

Leopoldo Scherner/ Traços do Ofício/ 2004

MARULHOS

marulhos

Um sonho feito balão
pressente o rumo do mar,
que chão de mar é molhado
e liso e fofo e alado
como carece ser chão
pra empinar sonho e gente.

Escafandrista de sonho
não diz que mar não dá pé.
Mergulha os olhos na água,
não dá bola pra marola,
ignora sombra e lama,
olha e vê, como vê!

Vê que gaivota é um peixe
que pulou fora do mar.
Daí que olhar seus avanços,
balanços e acrobacias,
traz um ar de nostalgia.
Saudades do vasto mar?

Vê a vida o mareante,
cavalga as algas e areias,
descasca o fruto-mar.
Aí se acendem estrelas,
conchas, polvos e arraias:
há um mar dentro do mar.

Apalpar estas entranhas,
alquimia de sereias,
é reencontrar o menino
que outro dia viu o mar,
e se pôs a perguntar
se o verbo dos princípios
não seria o verbo almar?

Edival Perrini/ O olho das águas/ 2009

A CERIMÔNIA DAS NUVENS

Nuvens

1.

Imenso papel azul
estende-se sobre a Terra.
Plural o que nele cabe,
acolhe a palavra nuvem.

A nuvem é singular
no mundo-dicionário,
mas se livre, é ave lépida,
vive em bandos, coletiva.

De seu ninho, vento e água,
flui bálsamo fecundo,
e a bruma deste cio
exige contemplação.

2.

Não cabe no peito
a cerimônia das nuvens
quando tinge de arabescos
o papel azul do céu.

É quando as nuvens estouram:
surgem velas peixes
monstros
bizarros gigantes que andam.

Se olhamos, não colhemos
a completa intenção
do celeiro transformante.

Mudam sempre os enredos
por contínua invenção?
Ou as formas são andantes
pois que buscam posição
para espiar nossos segredos?

Incomunicáveis,
as nuvens tecem casulo
de onde voarão
estrelas.

3.

O prazer do movimento
se retira,
ganha o ar novo alento,
geometria.

Surgem retas e quadrados,
olaria,
singular jogo de dados,
sintonia.

Surgem sombras ao esquadro,
contramão
de desejos ansiados,
ilusão.

Popular ensinamento
denuncia:
céu pedrento é chuva ou vento,
poesia.

4.

O dentro da palavra céu
esconde a seiva e os vapores,
tintura de sonhos e cores,
da alma das algas do mar.

Cardume de tintas agrestes
esculpe com asas e alarde
fantástica teia no oeste,
a paz em laranja das tardes.

De repente, o movimento
desmancha a fotografia,
rolam pedras, rola o vento
desperta a artilharia.

Céu de britas, não de nuvens,
arrebenta algum tinteiro
que guardava só o cinza,
cor retida em cativeiro.

Livre o cinza se espalha,
não de leve, se amontoa.
Vejo que entra desta dor
no segredo das pessoas.

5.

Encharcado,
de horizonte a horizonte,
vibra o ar
seus arpejos de fonte.

Pressionado,
roga o mar sua origem,
a saudade
impõe às nuvens vertigem.

Abafado,
todo o cinza se encurva,
principia
a cerimônia da chuva.

Edival Perrini/ O olho das águas/ 2009

O BURACO DO ESPELHO

O buraco do espelho está fechado,
Agora eu tenho que ficar aqui
Com um olho aberto, outro fechado,
No lado de lá onde eu caí.

Pro lado de cá, não tem acesso,
Mesmo que me chamem pelo nome
Mesmo que admitam meu regresso
toda a vez que eu vou a porta some.

A janela some na parede
A palavra de água se dissolve
Na palavra sede, a boca cede
Antes de falar e não se ouve.

Já tentei dormir a noite inteira
Quatro, cinco, ou seis da madrugada.
Vou ficar ali nessa cadeira,
Uma orelha atenta, outra ligada.

O buraco do espelho está fechado.
Agora eu tenho que ficar agora
Fui pelo abandono abandonado
Aqui dentro do lado de fora.

Arnaldo Antunes in “Erótica: os Sentidos da Arte”, Espaço Banco do Brasil, São Paulo, out./2005 a jan./2006)

Edival Perrini

Edival Antonio Lessnau Perrini nasceu em Curitiba-PR, em 23 de outubro de 1948, onde cresceu e reside. Saiba +

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