Poemas vivos
Não se afobe, não
Que nada é pra já.
O amor não tem pressa
Ele pode esperar
Em silêncio
Num fundo de armário
Na posta restante
Milênios, milênios
No ar.
E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa.
Os escafandristas virão
Explorar sua casa,
Seu quarto, suas coisas,
Sua alma, desvãos.
Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras,
Fragmentos de cartas, poemas,
Mentiras, retratos,
Vestígios de estranha civilização.
Não se afobe, não,
Que nada é pra já.
Amores são sempre amáveis.
Futuros amantes, quiçá,
Se amarão sem saber
Com o amor que um dia
Deixei pra você.
Um comentário
Tags: amantes, amáveis, ar, armário, Chico Buarque, cidade, civilização, coisas, escafandrista, esperar, futuro, milênios, palavras, pressa, rio
na noite interminável,
onde um galo
pra gritar
que amanheceu?
Perdi algumas deusas no caminho do sul ao norte,
e também muitos deuses no caminho do oriente ao ocidente.
Extinguiram-se para sempre umas estrelas, abra-se o céu.
Uma ilha, depois outra mergulhou no mar.
Nem sei direito onde deixei minhas garras,
quem veste meu traje de pelo, quem habita minha casca.
Morreram meus irmãos quando rastejei para a terra,
e somente certo ossinho celebra em mim este aniversário.
Eu saía da minha pele, desbaratava vértebras e pernas,
perdia a cabeça muitas e muitas vezes.
Faz muito que fechei meu terceiro olho para isso tudo.
Lavei as barbatanas, encolhi os galhos.
Dividiu-se, desapareceu, aos quatro ventos se espalhou.
Surpreende-me quão pouco de mim ficou:
Uma pessoa singular, na espécie humana de passagem,
que ainda ontem perdeu somente a sombrinha no trem.
3 comentários
Tags: achados e perdidos, aniversário, caminho, casca, discurso, estrelas, garras, ilha, ocidente, oriente, trem, Wislawa Szymborska
De entardecer em entardecer
faz-se a noite
e a minha noite.
A noite que agora se faz aí fora
repete-se,
e se repetirá.
A minha noite é sutil tessitura,
substância viva de carne e ossos
para acolher depois
o nada.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo,
que tecido, se eleva por si: luz balão.
Nenhum comentário
Tags: aéreo, armação, balão, fios, galo, grito, gritos, João Cabral, manhã, teia, tenda, toldo